Capítulo 7
Enquanto David, Freira e Lígia ficavam espantados com tudo o que lhes ia sucedendo nesse dia, voltemos um pouco mais a Guildenhome.
A princesa Raquel exibia um sorriso radiante pela primeira vez em semanas. Fábio ia retornar ao castelo depois de escoltar os seus compatriotas das aldeias da periferia para lugar seguro. Tinham sido umas semanas de combates quase sem descanso, mas com a chegada dos reforços de Balad Naran, Fábio conseguia pelo menos um pouco de descanso antes de voltar ás linhas da frente.
No seu pensamento estava Raquel, a princesa, a rainha do seu coração. Embora apaixonados sabiam que o seu romance tinha poucas hipóteses de ser consumado num casamento feliz. Fábio, embora cavaleiro de Guildenhome, era de uma classe demasiado inferior para ser considerado um candidato a um matrimónio. Mas o amor não olha a estratos sociais, a castas ou qualquer racional humano de grandeza ou elitismo, o amor une corações, almas, vidas e Fábio e Raquel estavam unidos desde o dia em que se tinham visto pela primeira vez.
Se bem que esse primeiro encontro não tivesse sido algo saído de um romance onde um casal se vira sob as estrelas e soubera que o seu destino era o de ficarem juntos. Não. Foi, se me permitem a comparação como se dois Auroques de Meneloth colidissem após uma corrida de um qulilómetro.
Ele um jovem escudeiro a iniciar o seu treino de cavaleiro, ela uma jovem princesa sem percepção do seu papel ainda. Ambos orgulhosos do que eram e do que viriam a ser.
Fora um encontro casual, numa estrebaria, e tudo começara com um pequeno mal entendido.
«Vós, moço de estrebaria.» disse Raquel com o sem tom mais real. «Ide selar o meu cavalo.»
Fábio estava a tomar conta do seu cavalo, um último presente de sua família antes de sua partida, olhou Raquel de alto a baixo.
«Selai-o vós mesma.» disse Fábio agastado. «Pois não sou moço de estrebaria, mas sim um cavaleiro em treino. E não receberei ordens de uma qualquer aia.»
«Aia?!» Exclamou Raquel colérica. «Eu sou princesa deste reino!»
«Mil perdões majestade.» disse Fábio com uma vénia jocosa. «Mas procurai então o moço de estrebaria para selar vosso cavalo.»
«Insolente!» exclamou Raquel. «Como vos atreveis a tratar assim vossa princesa?»
«Princesa sereis sempre, pois sois filha de rei.» disse Fábio. «Mas já haveis aprendido a ser uma?»
«Que façais como vos aprouver!» exclamou Raquel e saiu das estrebarias furiosa.
Mas as palavras de Fábio ficaram com ela. Que sabia ela de ser princesa além de mandar outros fazer coisas por ela? Como podia ela governar se ainda ninguém lhe tinha dito ou ensinado como o fazer?
A partir desse dia Raquel iniciou uma jornada de aprendizagem, que a tornaria uma princesa amada e respeitada por todo o seu povo. E aí apreundeu o papel da nobreza. Devem liderar e não só mandar.
Enquanto Fábio subia na hierarquia dos cavaleiros, Raquel estudava a história do seu povo e do mundo. Enquanto Fábio se evidenciava em cavalaria, Raquel aprendera a selar, ferrar e tratar do seu próprio cavalo, o que lhe valera valentes reprimendas das suas aias ao verem-na chegar tão suja como qualquer moço de estrebaria. Os dois dominaram as armas tradicionais de Guildenhome. Mas enquanto Fábio criara a sua própria arma, o Vento de Guerra. Raquel decidira aprender a utilizar uma arma obscura do arsenal de Guildenhome, o chicote. Dominou tão bem as técnicas que passou a usar dois chicotes. Mas o couro não lhe dava a protecção que ela achava que devia ter. Por isso aprendeu a moldar o aço com os armeiros reais e criou para ela dois chicotes metálicos. Era uma competição entre eles, mas algo mais começou a crescer entre eles, um respeito pelos seus feitos, uma afeição pelo seu esforço e por fim tiveram a realização que se amavam.
O protocolo e cerimónia e a pura teimosia dos dois manteve-os afastados durante ainda muito tempo.
Mas um belo dia de Primavera, Fábio ficou com a incumbência de acompanhar Raquel numa cavalgada pelas zonas rurais de Guildenhome.
Embora rivais desde o dia que se tinham conhecido, pouco se tinham visto e o que viram um no outro surpreendeu-os.
Fábio era agora cavaleiro, robusto, com uma postura nobre sobre a sua montada, em quase nada parecia o jovem escudeiro que Raquel conhecera e detestara.
Para Fábio, Raquel também estava mudada, não era mais a menina mimada que ordenava por ser princesa. Era uma jovem mulher, atlética, com modos reais e despretensiosos, uma verdadeira princesa na total acepção da palavra.
O passeio decorria em total silêncio, um silêncio embaraçoso para ambos. Os dois desejavam falar, mas a vergonha do seu comportamento quando se haviam conhecido e a surpresa das mudanças notadas deixava-os ansiosos, nervosos e sem saberem como começar.
A beleza do passeio quase passava desapercebida aos dois enquanto cavalgavam pelos campos e florestas do reino. Estavam tão absorvidos em si mesmos que quase se esqueciam de parar na estalagem preparada para o almoço real. Uma simples casa, onde um velho estalajadeiro lhes serviu o melhor que tinha. Mas mesmo assim o silêncio persistia. Pequenos gestos de mão, um olhar furtivo de vez em quando traíam o que os corações sentiam e o velho estalajadeiro sorria ao ver os jovens comer naquele silêncio que dizia tanto a quem o sabia interpretar.
Partiram então, a caminho das aldeias perto da fronteira de Cobb, estavam satisfeitos com a refeição e os cavalos descansados trotavam ou galopavam com facilidade, felizes eles também com o passeio com seus donos.
Estava tudo calmo e sereno, lindo, como se a Vida tivesse aberto as portas do paraíso para os jovens aí passearem. Fábio soltou um suspiro e satisfação.
«Estais assim tão feliz, cavaleiro?» perguntou Raquel com doçura e ao mesmo tempo surpreendida com a sua coragem.
«Sim majestade.» disse Fábio. «Estou muito feliz, pelo passeio, pela refeição, pela...»
«Pela...?» indagou Raquel.
«Perdoai-me majestade, mas não ouso continuar.» disse Fábio corando um pouco.
«Não tenhais receios cavaleiro.» disse Raquel segura. «Dizei-me o que vos vai no coração.»
«É por causa de meu coração que não ouso continuar.» disse Fábio desviando o olhar. «Tenho receio que se o disser o que nele vai, poderei perder a magia deste momento.»
«São belas vossas palavras.» disse Raquel. «Mas aguçam a minha curiosidade. Dizei-me, rogo-vos.»
«Uma princesa não deve implorar a um cavaleiro.» disse Fábio.
«Então dizei-o a uma qualquer aia.» disse Raquel lembrando o seu primeiro encontro.
«Perdoai este moço de estrebaria.» disse Fábio sorrindo docemente. «O meu comportamento foi horrível.»
«O nosso.» disse Raquel com os seus olhos castanhos brilhando na luz da tarde. «Comecemos então de novo. Eu sou Raquel, princesa de Guildenhome.»
«Eu sou Fábio, vosso humilde servo.» disse Fábio com uma vénia respeitosa.
Encetaram então uma conversa que durou até ás aldeias que Raquel iria visitar. Conversaram sobre tudo e sobre nada, de armas, ementas e os seus corações cada vez mais se abriam um ao outro.
Quando voltavam ao castelo, já ao pôr do sol, pararam numa colina onde assistiram ao sol baixar por entre os picos de Cobb.
«O que escondias hoje á tarde?» perguntou Raquel suavemente.
«Que a tua presença tornava o passeio perfeito.» disse Fábio quase sem pensar. «Perdão majestade, eu não queria...»
«Não te preocupes Fábio.» disse Raquel parecendo um anjo á luz mortiça de pôr do sol. «Eu pensei o mesmo.»
E ali, no cimo de uma colina sem nome, um beijo selava o destino e uma princesa e de um cavaleiro.
Mas Fábio voltava agora ao castelo, com os seus homens. Raquel esperava-os nos portões liderando depois em procissão com a guarda real os heróis que voltavam a casa.
Raquel não conseguiu esperar mais e cavalgou ao encontro das filas de soldados perfilados que vinham descendo a estrada. A aparição da sua princesa como que rejuvenesceu os homens de Fábio. Foi como se a presença dela apagasse, nem que fosse por pouco tempo a fadiga, a tristeza e a carnificina que tinham vivido durante as últimas semanas.
«Bem vindos a casa guerreiros de Guildenhome.» saudou Raquel parando em frente á montada de Fábio.
«Senhora.» disse Fábio com uma pequena vénia. «Vossa presença alegra-nos e estamos aqui para vos servir.»
«Acompanhai-me cavaleiro.» disse Raquel. «O meu pai esperavos.»
Assumiram então a posição de liderança do exército e retomaram o caminho.
«Pensei que este dia jamais chegaria.» disse Raquel triste.
«Apenas a tua memória me manteve.» disse Fábio. «Eu tinha de ver-te novamente.»
«E eu a ti.» disse Raquel sorrindo.
Nenhum gesto os traíra, nem um toque trocaram, mas só a visão foi suficiente para os seus corações quase lhes saltarem do peito.
Os protocolos de recepção duraram até ao jantar num dos grandes salões e depois seguiu-se uma pequena festa. Raquel usou o protocolo a seu favor concedendo a Fábio duas danças, uma por ser cavaleiro do reino e outra por ser um herói de regresso a casa.
Quando a festa acabou Raquel esgueirou-se para uma das alas menos usadas do castelo e pouco tempo depois Fábio chegava também.
Não foram precisas palavras, gestos dramáticos ou outros subterfúgios que outros teriam de fazer para expressarem o que sentiam. Foi preciso apenas um beijo, uma carícia na face, o sentir da pele do ser amado e uma união de corpos, almas e corações que durou até á manhã seguinte.