Capítulo 8
O amor é estranho e revela-se por vezes de maneiras tão estranhas como o próprio amor.
O povo de Cobb, maioritariamente clãs pastoris, foi do que menos sofreu com o ataque de Rashagall. Não tendo grandes cidades e aldeamentos e com a sua fonte de sustento andando sempre ao seu lado, os de Cobb conseguiam opor-se aos anjos, usando tácticas de guerrilha, com emboscadas constantes, que embora não destruíssem um exército, provocavam-lhes repetidas baixas, e baixavam a moral dos invasores.
Entre os clãs estava o clã da montanha de Brunse de onde provinha Bruno. Bruno era um jovem pálido, de cabelos claros, olhos pequenos e vivos. Era um bom espadachim e a sua atitude jovial metia-o por vezes em mais sarilhos do que contava. Conhecia as montanhas e vales como ninguém e já várias vezes se envolvera em escaramuças por entrar sem permissão nas terras de clãs que nem seus vizinhos eram.
Mas nesse dia fatídico Bruno e o seu clã observavam uma pequena caravana num vale ao longe.
«Consegues ver de onde são?» perguntou outro jovem do clã.
«São de Sulil Crag.» disse Bruno. «A bandeira nas costas denuncia-os.»
«Então Sulil Crag caiu.» disse um dos mais idosos. «A nossa muralha ruiu.»
«Com a traição que vimos de Rashagall.» disse Bruno. «Poderíamos mesmo esperar que Sulil Crag resistisse?»
«Nós resistimos!» exclamou o velho.
«Nós somos clãs espalhados.» disse Bruno. «A nossa capital e o nosso rei cairam há já semanas. Só resistimos porque não somos um povo centralizado.»
«E Sulil Crag?» perguntou outro membro do clã.
«Os castelos de Sulil Crag albergam os seus exércitos e decerto abriram as portas aos exércitos de Rashagall como a nossa capital o fez.» disse Bruno tristemente.
«Mas ainda conseguimos avisar Kyra e Guildenhome.» disse outro membro do clã.
«Sim.» disse Bruno. «Mas se Vulkir cair Rashagall chegará a Balad Naran e á retaguarda de Guildenhome e finalmente á nossa.»
«E se Kyra cair?» perguntou outro jovem.
«Estaremos cercados e provavelmente perdidos.» disse Bruno. «Mas o que interessa agora é o que faremos, se faremos alguma coisa por aquela caravana.»
«Anjos!» o grito da sentinela fez todo o clã procurar a segurança das grutas.
Mas o alvo dos anjos não era o fugidio clã, mas sim a caravana de refugiados a caminho dos reinos que ainda resistiam.
O seu voo levou-os a entrar no vale, para atacarem a caravana de Sulil Crag. Mas atacar uma caravana de Sulil Crag era como brincar com a cauda de um Felíneo, as garras e dentes estavam sempre por perto.
Os anjos aproximaram-se em voo rasante e foram recebidos por flechas e pelas grandes Yari dos defensores. Os que conseguiram passar por estes defensores e atingir as carroças depararam-se, não com refugiados indefesos, mas com membros da nobreza de Sulil Crag armados para os receber.
Entre estes estava uma jovem de nome Lina, era de baixa estatura, os seus olhos castanhos mostravam uma vontade de ferro e uma personalidade forte, mas a sua cara redonda mostrava também a sinceridade e a doçura que também existiam nela. Mas era também conhecida pelo seu temperamento explosivo. A sua família era vassala de um dos grandes senhores do reino e por ordem dele fugira de Sulil Crag, embora a sua honra lhes pedisse que ficassem e lutassem até á morte.
Lina por ordem de seus pais estava nas carroças, mas estava com a sua armadura vestida e a sua arma não lhe saía das mãos. A Kama, uma foice de cortar cereais, que Lina refinara como uma letal arma de guerra, pois sendo mulher o uso da espada lhe estava interdito. Mas os anjos possuíam uma vantagem, as suas asas mantinham-nos afastados do curto alcance da arma de Lina. Mas Lina preparara uma surpresa. Prendera uma corrente e um peso ao cabo da sua arma e o primeiro anjo que enfrentou descobriu o seu terrível propósito.
Lina lançou a corrente e laçou as asas do anjo que caiu aos seus pés. A Kama cumpriu o seu propósito e ceifou a vida do ser celestial.
Os de Sulil Crag resistiam como podiam, mas os anjos em breve os iam conseguir eliminar. Mas Bruno e o seu clã vieram em seu auxílio.
Do topo do penedo veio o selvagem grito de guerra dos clãs de Cobb e todo o clã em fúria abateu-se sobre os surpresos anjos.
Em momentos todos os anjos estavam por terra sob as espadas ensanguentadas dos guerreiros de Cobb e de Sulil Crag.
Por entre os vivas e as congratulações dos dois povos, Bruno olhava para as carroças curioso e deu de caras com um anjo ainda vivo que brandia a sua espada contra ele.
«Rashaga...» ia dizer o anjo, mas as sua palavras foram silenciadas por uma corrente de aço que lhe rodeou o pescoço e o puxou para trás.
Bruno estava atónito e ainda mais ficou quando uma lâmina atravessou o pescoço de seu inimigo.
«Maldita criatura!» exclamou Lina, coberta de sangue. «E tu, vais ficar aí parado como estúpido?!»
Bruno saiu da sua estupefacção e em segundos o coração do anjo era trespassado pela sua espada.
«Nada mau para um pastor.» disse Lina tirando a sua corrente do pescoço do ser. «Vocês de Cobb sabem lutar.»
«Obrigado. Acho...» disse Bruno um pouco confuso.
Os de Cobb acolheram então os refugiados de Sulil Crag e Bruno e Lina ficaram juntos a defender as montanhas e vales de Cobb e de alguma forma estranha o pastor curioso e a filha de nobres tornaram-se primeiro amigos e mais tarde mais do que isso.
Mas não só de amor vive o Homem, se me é permitida a brincadeira. Por vezes amizades estranhas acontecem quando as circunstancias assim o determinam.
Os povos de Malikor e Hellrog nunca tinham sido bons vizinhos e já várias vezes se tinham envolvido em escaramuças fronteiriças. Filipe e Luís já por algumas vezes tinham cruzado espadas, mas quando os exércitos de Rashagall tinham chegado e destruído os seus reinos, os dois rivais tinham tido de se unir ou sucumbiriam.
Tinham-se unido a uma grande caravana que contornara as montanhas de Meneloth para chegarem a Kyra. E por várias vezes tinham arriscado as suas vidas pelo povo contra quem lutavam.
No caminho para Guildenhome outra amizade estranha acontecia. Carmen das Amazonas era uma guerreira completa, personalidade forte, porte atlético, voz altiva e de comando. Mas com os seus exércitos derrotados e em fuga mostrava agora também um lado vulnerável e mesmo a sua voz mostrava ternura ao falar com o seu povo e com os outros que os acompanhavam. Entre eles estava um jovem que se tornaria uma amigo e companheiro durante a viagem.
Ivandro de Kalil era de tez negra, alto, musculado, mas a sua personalidade afável e postura um pouco tímida faziam-no parecer uma pessoa acessível e simpática, que realmente era.
Longe das restrições dos seus povos Carmen e Ivandro tornar-se-iam grandes amigos e levariam a um melhor futuro os seus povos.
Ao Sul a bondade e generosidade de duas jovens levariam também as pessoas que acompanhavam a chegar seguras ás costas de Vulkir.
O que restava dos exércitos Helénicos de Venoa, marchava tristemente em retirada, tentando chegar a Vulkir. Acompanhavam-nos um grande número do seu povo, levando os poucos pertences que haviam conseguido salvar do massacre das suas cidades. Sempre perseguidos pelas forças de Rashagall entraram então no reino de Arelai onde se lhes juntaram os refugiados desse reino.
Entre os dois exércitos estavam Cátia dos Helénicos e Rose de Arelai. As duas juntas pelo acaso, mas deram-se bem devido a um incidente, tão ínfimo numa altura de guerra como de grande impacto naquele momento no tempo.
Para os de Venoa as suas armas eram a sua vida. Seguiam um velho ditado á letra “Volta com o teu escudo, ou volta nele.”
Um dos soldados, ferido, estava a ficar para trás e era incapaz de segurar o grande escudo por muito mais tempo.
«Alguém por misericórdia me mate!» gritou o soldado.
«Calai-vos idiota!» exclamou Cátia aproximando-se.
«Não consigo mais carregar o meu escudo!» exclamou o soldado. «Deixai-me voltar nele!»
«Quereis morrer por causa de um escudo?» indagou Rose. «A febre tomou vossa mente.»
«Matai-me por favor.» disse o jovem deixando cair o escudo.
«Muito bem.» disse Cátia elevando a sua lança.
«Não podeis fazer isso!» exclamou Rose surpresa. «Não vos permitirei.»
«Não vos preocupeis.» disse Cátia sorrindo.
E com um movimento rápido a lança de Cátia rodopiou no ar atingindo o soldado na cabeça com o cabo deixando-o inconsciente sobre o seus escudo. Rose sorria satisfeita.
«Precisais de ajuda?» perguntou Rose.
«Se quiserdes segurar na outra ponta, levaremos este tonto até Vulkir.» disse Cátia.
E assim as duas jovens continuaram o seu caminho tomando conta do inconsciente soldado.