Capítulo 9

 

No plano de existência dos deuses, Rashagall chegava a um ponto crítico do seu plano. Os seus exércitos estavam a chegar a um impasse com os reinos que ainda resistiam. Rashagall queria destruir os reinos da Luz antes de atacar os das Trevas, mas sabia que Artanis e os deuses do Caos se estavam a unir para a derrotar e isso consolidaria o seu plano. Não sabia era o porquê dos exércitos das Trevas ainda não se terem mobilizado. Zerathull e Tassadar ainda guardavam as suas cartas consigo como se o jogo não lhes interessa-se. E o Nexus permanecia imóvel como sempre. Apenas Artanis mostrava mudanças, a sua luz diminuía á medida que as suas cartas eram destruídas uma a uma pelas de Rashagall.

 

No reino Mortal, David estava de novo sózinho no templo de Artanis, perdido e desorientado olhava para um templo em ruínas. Apenas ele ali estava até ver uma luz mortiça ao fundo da sala.

 

«Senhora Artanis?» perguntou David.

 

«Sim, príncipe David.» disse Artanis, mas já não era a mulher linda feita de luz que David conhecia, mas uma velha doente cuja luz morria.

 

«Senhora que vos aconteceu?» indagou David surpreso.

 

«Estou fraca.» disse Artanis. «Os meus poderes esgotam-se a lutar contra Rashagall.»

 

«Esperamos vossa decisão.» disse Zerathull das trevas.

 

«Ou deixareis vossa deusa perecer ás mãos de sua irmã?» perguntou Tassadar.

 

«Não deixarei isso acontecer!» exclamou David amparando Artanis. «Eu serei o vosso líder, Rashagall cairá!»

 

«Sois sensato em aceitar.» disse Tassadar. «As minhas forças esperarão vossas ordens.»

 

«Bem como as minhas.» disse Zerathull.

 

«Obrigado meu filho.» disse Artanis. «Eu sabia que iríeis escolher a melhor decisão.»

 

David recobrou a consciência de onde estava. Estava a almoçar no grande salão e olhava o seu prato, perdido no tempo. Á sua frente Freira e Lígia olhavam-no preocupadas. David com um pequeno aceno confirmou o que as duas já pensavam ter acontecido.

O plano havia sido posto em marcha, eles em breve sairiam em busca dos heróis que o Nexus escolhera.

 

Foi fácil para David convencer o seu pai a deixá-lo visitar os reinos sitiados, para dar animo ás tropas que aí estavam a ajudar os exércitos. Freira e Lígia iriam acompanhá-lo.

O navio real foi aparelhado e em poucos dias os três estavam no mar a caminhodas costas de Vulkir.

 

«Como vais fazer para que todos os exércitos sigam as tuas instruções?» perguntou Freira.

 

«Tenho um código de cores com generais de diversos reinos.» disse David. «Se os exércitos das trevas vierem com esses códigos eles saberão que eu os enviei.»

 

«Um plano arrojado, majestade.» disse Lígia. «Mas não me parece o seu uso vos deixe muito feliz.»

 

«Não, deveras não.» disse David. «Tudo o que me faz lembrar dele, não me deixa nada feliz.»

 

«Dele?» perguntou Freira.

 

«Perdão majestade.» disse Lígia. «Não queria incomodá-lo com essas más lembranças.»

 

«Mas do que estão a falar?» perguntou Freira confusa.

 

«Falamos de António.» disse David cerrando os punhos.

 

«António...» disse Freira. «Lembro-me de o ter conhecido. Lembro-me também de ouvir histórias sobre ele, mas eram apenas rumores e lendas.»

 

«Vinde senhora.» disse Lígia. «Deixemos o príncipe.»

 

As duas afastaram-se deixando David olhando o horizonte com o pensamento perdido.

 

«Vós sabeis a história, não sabeis Lígia?» perguntou Freira.

 

«Sei.» disse Lígia tristemente. «Foi uma grande perda para Balad Naran.»

 

«Por favor contai-me.» disse Freira. «Eu preciso compreender a razão de não se poder falar sequer no nome de António.»

 

«É uma história triste, envolta em mistérios e tragédia.» disse Lígia.

 

«Eu preciso saber.» disse Freira decidia.

 

«Então sentai-vos.» disse Lígia. «António foi um cavaleiro de Balad Naran. Era amigo de David, um guerreiro corajoso, com um humor sarcástico e digamos, um pouco impróprio para senhoras.»

 

«Parece ter sido uma pessoa divertida.» disse Freira. «Lembro-me de o ter conhecido em Carmel e o seu sorriso também o lembro. Pena que tenha morrido.»

 

«Isso não se sabe ao certo.» disse Lígia. «Foi decretado o seu esquecimento mas não se sabe ao certo o seu destino.»

 

«Não me deixeis mais curiosa.» disse Ferira. «Contai-me tudo.»

 

A mente de Lígia começou a recuar no tempo, até á pré-adolescência de David, quando o príncipe rodeado pelo usual grupo de bajuladores da realeza conhecera um jovem que viria mais tarde a revoltar o seu reino.

David e os seus companheiros encontraram o jovem ás portas da casamata dos iniciados em cavalaria. Estava de roupas enxovalhadas e sujas e a sua arma era apenas uma espada ferrugenta.

 

«Que vem este pobretanas fazer a uma escola de cavaleiros?» disse um dos bajuladores bem alto.

 

«Provavelmente vem mendigar um local para passar a noite antes de voltar para casa.» disse outro.

 

David Olhou o jovem de alto a baixo avaliando-o.

 

«Não julgueis o livro pela sua capa.» disse David cauteloso. «Por vezes os melhores livros estão em piores condições.»

 

«Obrigado majestade.» disse o jovem fazendo uma vénia.

 

«Ousas falar ao príncipe, seu pebleu!» vociferou um dos bajuladores. «A minha espada ensinar-vos-á boas maneiras!»

 

E antes que David pudesse fazer alguma coisa já os dois jovens se enfrentavam. Ao primeiro toque de espada veio a primeira surpresa. A espada do pobre jovem perdeu a ferrugem, sendo apenas sujidade sobre a lamina. O brilho indicava uma espada bem cuidada e de lamina afiada, uma arma de cavaleiro. Outra surpresa foi a destreza com que o jovem desarmou o bajulador e o pôs no chão implorando pela sua vida.

 

«Jovem!» exclamou David. «Peço-vos desculpa por meu amigo. Rogo-vos que o deixeis viver.»

 

«Por vós majestade.» disse o jovem embainhando a espada.

 

«Obrigado.» disse David. «Como vos chamais?»

 

«Meu nome é António.» disse o jovem. «Perdoai como me apresento, mas durante a noite dormi á chuva sob uma árvore e fiquei neste estado de desreparo.»

 

«Reparei que vosso estado não era resultado de pobreza.» disse David deixando os seus bajuladores a tomarem conta do seu amigo caído. «Vosso brasão é do sul de Balad Naran?»

 

«Sim.» disse António juntando-se ao príncipe. «De Senun.»

 

«Senun?» disse David. «Vindes de longe António.»

 

E os dois jovens iniciaram uma amizade que durou durante o treino de cavalaria e mais tarde em várias batalhas contra as forças das Trevas. António tornou-se parte da guarda pessoal de David e acompanhara-o em várias viagens de estado por vários reinos do Leste e mesmo do Oeste. Foi durante estas viagens que o destino tomou as rédeas das vidas dos dois amigos. Em Carmel David conheceria Catarina, que depois se tornaria a sua amada Freira. António sugerira o esquema das cores para avisar os generais seus conhecidos de que necessitavam ajuda ou que eram aliados ou outras informações. No caminho de volta para Balad Naran, António apaixonara-se por uma jovem camponesa de nome Mashenka.

Era um amor visto com desprezo, pois como cavaleiro, António pertencia á nobreza e deveria casar com alguém também nobre. Mas António nunca ligara muito ao protocolo nobre e sem hesitar casara com Mashenka, vivendo numa humilde casa quando os seus deveres de Cavaleiro não o levavam ao palácio. Até mesmo David tivera hospedagem na humilde casa e vira em primeira mão a felicidade do casal.

 

Mas uma bruxa de Zaigonne e nome Cláudia atacou a região quando António estava em viagem e Mashenka foi morta. António ficou numa fúria como poucos lhe viram. Nem mesmo David conseguia acalmar o seu amigo. António sepultou o corpo de sua mulher sob a árvore mais alta da região, aquela onde tantos anos atrás pernoitara, e queimou a sua casa até não sobrar pedra sobre pedra. David mais tarde colocaria lá uma pequena estátua de uma mulher para se lembrar sempre de António e Mashenka e da sua felicidade.

 

António ia caçar aquela bruxa e destruí-la para sempre, mas o código de cavalaria não lhe permitia essa vingança e num momento que abalou Balad Naran e David em partícular. António renunciou ao seu voto de cavalaria.

O rei pocesso de raiva decretou a António a pena mais pesada alguma vez imposta em Balad Naran. António não seria apenas banido de Balad Naran  seria também votado ao esquecimento. Ninguém poderia falar dele ou com ele. António nunca tinha existido.

 

«E assim António abandonou Balad Naran» disse Lígia.

 

«É tão triste.» disse Freira. «David deve sofrer tanto com isso.»

 

«Durante algum tempo, o príncipe ficou irreconhecível.» disse Lígia. «Mas depois viestes vós e o seu coração reviveu.»

 

«E nunca mais souberam de António?» perguntou Freira.

 

«Algumas histórias de visitantes de outros reinos.» disse Lígia. «Contadas em surdina, mais rumores que verdades. E assim cresceu a lenda de António, o cavaleiro fantasma, o cavaleiro que nunca existiu...»

 

«E pensais que ainda vive?» indagou Freira.

 

«António era um grande cavaleiro.» disse Lígia. «Durante algum tempo ainda senti a sua presença, mas depois mais nada. Não senti a sua morte só um súbito desaparecimento.»

 

«Então pode ainda estar vivo.» disse Freira.

 

«Sim.» disse Lígia. «Pode é já não ser o homem que conhecemos...»